De um lado, notícia na editoria “geral” de “folia na rua” da “tia carmen”, dona de “tradicional casa noturna” da cidade; de outro, notícia na editoria de “polícia” de “flagrante” de “prostituição à luz do dia” por “mulheres que vendem o corpo” e que, em função disso, “teriam feito crescer roubos e furtos” em determinada região da capital.
São fatos distintos sendo noticiados, evidentemente. O que chama a atenção, porém, é que todas as mulheres em questão ganham a vida do mesmo modo.
Por quê, então, tratá-las de modos distintos?
Por que uma delas é a “tia carmen”, e a outra é uma mulher “que vende o corpo”? Qual a origem dessa tolerância social em relação à empresária, dona de “tradicional casa noturna”, e da ojeriza à profissional liberal que vende o corpo nas esquinas desta vida? Por que uma delas é “empresária” e a outra é “puta”?
É que putas de rua não patrocinam programas de rádio em veículos do Grupo RBS e, tampouco, recebem em suas assépticas mansões jogadores de futebol, políticos, juízes, promotores, médicos, empresários e jornalistas; é que putas de rua trepam em becos sujos ou em pulgueiros do baixo-centro de Porto Alegre, com maltrapilhos ou bêbados, desde que disponham de alguns trocados; é que putas de rua não servem de inspiração para contos eróticos literariamente sofríveis de jornalistas do Grupo RBS.

A versão “suja”
Daí uma das tarefas de um veículo como Zero Hora ser a sanitarização da sociedade, separando o que é “limpo” do que é “sujo”; daí a consequente retroalimentação da tolerância social em relação ao que foi socialmente higienizado; daí o veículo dito “popular” do Grupo tratar profissionais do sexo como “putas”, e o veículo “de elite” tratá-las como “empresárias”.
Daí, também, a condenação social de uma proposta como a do deputado Jean Wyllys [Psol-RJ], de regularização da atividade de profissionais do sexo, de uma grandeza moral ímpar. É que, regularizada a atividade, aparecem nomes, recibos; tudo vem à luz do dia.
Há uma parcela de “homens de bem” da sociedade limpa que, publicamente, escandaliza-se com a prostituição à luz do dia, com a prostituição das putas, mas que, na calada da noite, regala-se – ou, parafraseando o poeta, “faz tanta sujeira, lambuza-se a noite inteira até ficar saciada” – nas “tradicionais casas noturnas” do ramo. É para esses humanos ridículos que ZH escreve, que trata como “tia carmen” uma mulher que negocia o corpo de suas funcionárias tanto quanto as que trabalham na Voluntários. Também é p/ suas esposas, que se escandalizam com as putas que trepam mas que toleram as que fazem amor com seus maridos, desde que em casa tudo continue aparentemente bem.
É isso que queremos continuar ensinando a nossos filhos?
Lembre-se disso quando o Grupo RBS, aos quatro ventos, auto-entoar loas a seus “compromissos sociais”.
Pela imediata regularização da atividade de profissionais do sexo.
Pelo direito de todo ser humano adulto vender seu corpo de livre e espontânea vontade a hora que bem entender e a quem quiser.
Pelo fim da hipocrisia.