Tenho andado incomodado com o reacionarismo
incrustado na nossa sociedade. Me vejo em meio a amigos queridos e conhecidos
totalmente preconceituosos, racistas, homofóbicos e visceralmente “direitosos”,
discutindo esses temas nas redes sociais como verdadeiros doutores, com um “conhecimento
de causa” impressionante, ou seja, sua opinião pessoal, ou pior ainda, o
senso-comum.
É claro todos tem direito à liberdade
de pensamento, mas se quiser discutir o assunto é bom um mínimo de conhecimento
para além do achismo, um mínimo de “leitura” sobre o tema. História,
sociologia, filosofia e literatura não fazem mal a ninguém e não irão transformar
um “direitoso” num esquerdista ferrenho, um heterossexual num homossexual ou o
contrário.
Por isso procuro me socorrer de
autores, pensadores, etc... que conseguem discutir esses temas de uma maneira
clara, didática e embasada. Então compartilho este texto do Juremir Machado da
Silva, publicado originalmente no Correio do Povo do dia 20/11/2012, que aborda a questão dos negros no Brasil.
Em 1988, a Biblioteca Nacional
organizou uma exposição sobre a história do negro no Brasil e publicou o texto
que segue catálogo da mostra.
Nunca é demais lembrar a síntese que
segue.
A dívida brasileira com os negros é
impagável.
A resistência a qualquer política que
diminua essa mácula histórica é infame.
A política de cotas é o mínimo que se
pode fazer para começar a eliminar as consequências inerciais da nossa maior
infâmia em cinco séculos.
A ESCRAVIDÃO NO BRASIL
“Sem
negros não há Pernambuco”, afirmava no século XVI o Padre Antônio Vieira. E
outro jesuíta, André João Antonil, escrevia, no século XVI11, no seu “Cultura e
Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas”: “os escravos são as mãos e os pés
do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar
e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente”.
O Brasil, em razão de sua dimensão e da ausência de preocupação coma reprodução
biológica dos negros, foi o maior importador de escravos das Américas. Estudos
recentes estimam em quase 10 milhões o número de negros transferidos para o
Novo Mundo, entre os séculos XV e XIX. Para o Brasil teriam vindo em torno de
3.650.000.
Diversos grupos étnicos ou “nações”, com culturas também distintas, foram trazidos
para o Brasil. A Guiné e o Sudão, ao norte da linha do Equador, o Congo e
Angola, no centro e sudoeste da África, e a região de Moçambique, na costa
oriental, foram as principais áreas fornecedoras. Das duas primeiras vieram,
entre outros, os afantis, axantis, jejes, peuls, hauçás (muçulmanos, chamados
malês na Bahia) e os nagôs ou iorubás.
Estes
últimos tinham uma grande influência política, cultural e religiosa em ampla
área sudanesa. Eram de cultura banto os negros provenientes do Congo e de
Angola — os cabindas, caçanjes, muxicongos, monjolos, rebolos —, assim como os
de Moçambique.
Os escravos trabalhavam na agricultura, nos ofícios e nos serviços domésticos e
urbanos. Os negros do campo cultivavam para a exportação — atividade que dava
sentido à colonização — a cana-de-açúcar, o algodão, o fumo, o café, além de se
encarregarem da extração dos metais preciosos. Os negros de oficio especializaram-se
na moagem da cana e no preparo do açúcar, em trabalhos de construção,
carpintaria, olaria, sapataria, ferraria, etc.
No
século XIX, não foram poucos os escravos que trabalharam como operários em
nossas primeiras fábricas. Quanto aos negros domésticos, escolhidos em geral entre
os mais
“sociáveis”, cuidavam de praticamente
todo o serviço das casas-grandes e habitações urbanas: carregar água,retirar o
lixo, além de transportar fardos e os seus senhores em redes, cadeiras e
palanquins.
No século XIX generalizou-se ainda a atividade dos negros de ganho e dos negros
de aluguel. Os primeiros buscavam serviços na rua, trabalhando como ambulantes,
por exemplo, com a condição de dividir com os seus senhores a renda obtida. Os
segundos eram alugados a terceiros também para variados serviços. Era comum
vê-los nas ruas falando alto, oferecendo-se para trabalhos, chamando a atenção
dos pedestres ao se aproximarem com fardos pesados, entoando cantos de
trabalho. Ê, cuê… / Ganhado… / Ganha dinhero / Pra seu sinhô.
Nas minas e lavouras de exportação, nestas últimas na época de safra, era comum
o escravo trabalhar até 14 ou 16 horas, alimentando-se e vestindo-se mal e se
expondo ao clima. Em geral amontoavam-se em senzalas impróprias para a
habitação e careciam de cuidados médicos, sendo frequentemente vítimas de
doenças que se tomavam endêmicas, como a tuberculose, disenteria, tifo,
sífilis, verminose, malária. A média de vida útil, por isso, variava de sete a
dez anos.
Não há motivos para se duvidar da brutalidade das condições gerais de vida e da
violência dos castigos recebidos. A legislação portuguesa e brasileira, a
documentação iconográfica e os relatos deixados pelos brancos e, em número
muito menor, pelos negros (a mesma legislação impedia o acesso à educação) dão
forte testemunho a respeito.